Marcelo Barros nem sempre concordava com as posturas de Dom Helder no campo da atuação política e nas suas análises sociais; porém, mais tarde, reconheceu de forma admirada que a história provou que o profeta estava correto em sua coerência. Conheça as heranças do Dom nesse campo:
(Este texto é o último de um conjunto de publicações abordando as heranças de Dom Helder. Caso queira saber mais, leia o texto anterior).
1- A primeira herança dessa lista se refere a uma postura de liberdade comunicativa diante de todas as circunstâncias, e a capacidade de praticar a cortesia na relação de cuidado e colaboração para com todos, pobres e ricos, humildes e poderosos, crentes ou não.
Marcelo conta que, desde que começou a colaborar com o arcebispo, este “manifestou de diversas formas o desejo de dialogar com igrejas evangélicas, com comunidades de outras religiões e mesmo com grupos e partidos políticos de esquerda, comprometidos com a justiça e a paz”. Também confessa: “Nunca o vi tratar menos bem a um rico ou considerar menos uma pessoa de posição tradicionalista ou conservadora. Ao mesmo tempo, não escondia de ninguém seu cuidado maior com as pessoas mais pobres, às quais chamava ‘os preferidos de Deus’”.
Sobre isso, cita o Dom: “Ninguém se escandalize ao me ver frequentar pessoas consideradas indignas e pecadoras… (…) Ninguém se espante ao me ver com pessoas tidas como perigosas, de direita ou de esquerda, da maioria ou da oposição (…) Ninguém pretenda me ligar a um grupo, um partido, de modo que eu considere amigos os seus amigos ou faça minhas as suas inimizades. A minha porta e o meu coração serão sempre abertos para todos (…) É claro que, ao amar a todos, a exemplo do Cristo, devo ter um amor especial pelos pobres (…) Quem quer que esteja sofrendo no corpo e na alma, seja pobre ou rico, quem quer que esteja desesperado, terá um lugar especial no coração do bispo”.
FAÇAM A REVOLUÇÃO ECONÔMICA E SOCIAL, MAS REALIZEM TAMBÉM A REVOLUÇÃO MORAL E INTERIOR. FAÇAM-NA ATRAVÉS DO DIÁLOGO.
2- Outra herança que Dom Helder nos deixa é a de que devemos buscar sempre aprender mais sobre a realidade, a fim de organizar a luta com sabedoria e astúcia, discernindo o que há de bom e ruim nas ideologias.
Marcelo afirma: “A primeira coisa que dele aprendi é que podemos ser pessoas boas, sonhadoras e cheias de fé, mas sem ingenuidades” e complementa sobre o Dom, que mudou de pensamento e prática após algumas experiências, e que logo “criticava os programas assistencialistas e propunha a libertação das ideologias”.
Pra esclarecer, cita o próprio Helder: “Percebi que estava errado e me converti. Percebi logo que o mundo não se divide verdadeiramente em direita e esquerda e sim entre o mundo dos mais ricos e o mundo da imensa multidão de pobres. Até hoje encontro pessoas que continuam com aquela visão maniqueísta da vida que eu tinha em 1937 e mudei de pensamento”, que também não era ingênuo quando o assunto era poder púbico: “Nunca me enganei a esse respeito. Governo só funciona quando há uma sociedade civil organizada e quando os pobres cobram o que é seu direito, e não alguma esmola ou assistencialismo político”.
O monge Marcelo ainda apresenta uma poesia do Dom a esse respeito: “Especializa-te em tentar descobrir em toda e qualquer criatura o lado bom que ela possui – ninguém é maldade concentrada. Especializa-te em tentar descobrir em toda e qualquer ideologia a alma de verdade que ela carrega no seio – a inteligência é incapaz de aderir ao erro total…” e conclui: “Para mudar a realidade, é importante conhecê-la bem e aprofundá-la. Aos militantes dos anos 60, ele dizia o que, certamente, repetiria agora: ‘Não cessem de estudar e de confrontar ideias e propostas de mudanças’”.
NÃO TEMAS A VERDADE. POR MAIS DURA QUE TE PAREÇA, POR MAIS QUE TE FIRA, É AUTÊNTICA. NASCESTE PARA ELA. SE FORES A SEU ENCONTRO, SE DIALOGARES COM ELA, SE A AMARES, NINGUÉM MAIS AMIGA E MAIS IRMÃ…
3- O Dom também apresentava uma resignação e uma renúncia absoluta a revidar ou combater os que o perseguiam, mesmo diante das calúnias, críticas injustas e piores ataques. Ele também se recusava a criticar qualquer pessoa e a desobedecer a superiores.
Marcelo relata: “Dom Helder não se negava a debater ideias, mas recusava terminantemente responder a polêmicas e ataques. Lembro-me dele dizendo, em reunião, que evitava ler, seja elogios, seja ataques”. Para exemplificar, conta: “Havia anos, Gilberto Freire publicava, semanalmente, nos principais jornais do Recife, artigos nos quais tecia críticas ferozes ao arcebispo que, ele sabia, não tinha liberdade de responder. Dom Helder sempre se referia a ele com todo o respeito e admiração”. Continua: “Quem conheceu Dom Helder, sabe que nunca ele falava mal de alguém, e quando criticava uma atitude ou opinião, várias vezes, o vi deixar claro que não estava condenando a pessoa em questão. Uma das raríssimas vezes em que o ouvi criticar alguém, ele se queixava de um agente de pastoral. A sua queixa me toca até hoje: ‘é uma pessoa que odeia os ricos e não ama suficientemente os pobres para ser uma pessoa de amor’”.
Por fim, relembra o caso em que o arcebispo fora criticado maliciosamente na imprensa, por um dos padres de Recife. Quando alguns sugeriram que o Dom deveria punir esse sacerdote, ou ao menos lhe dar uma advertência, Helder respondeu: “Como vocês querem que eu, que luto pela liberdade de consciência e expressão, tome qualquer atitude contra um irmão exatamente porque ele fez o que eu proponho: expressou-se livremente? Defendo o seu direito de dizer o que quiser”.
4- A quarta herança dessa lista trata da valorização do diálogo e promoção da não violência ativa, a fim de vencer pela doçura e fraternidade, lutando por uma justiça que não queira o mal de ninguém.
Marcelo atesta sobre o Dom: “Insistia que qualquer ação de mudança será através de um compromisso com a paz e a não violência ativa. Defendia o diálogo como expressão de um caminho em comum, entre pessoa diferentes a serviço dessa transformação do mundo”, e acrescenta: “A partir disso, passou a ver toda pessoa que trabalha pela justiça como aliada e companheira, mesmo se, tratando-se de grupos subversivos, ele fizesse questão de se afirmar em desacordo com os métodos empregados, e não aceitasse o ódio de classe e a violência”.
O próprio Helder elucida: “A não violência se recusa a fazer vítimas entre os outros. Coloca-se ao lado das vítimas para mudar a realidade. A dificuldade é refletir, preparar e organizar a ação não violenta para que, no primeiro choque, o povo não a abandone. Não existe possibilidade de vitória contra a opressão e contra as estruturas de injustiça sem sacrifícios. Os sacrifícios aceitos pela não violência preparam melhor o futuro e a reconciliação do que os sacrifícios impostos pela violência” e complementa: “uma não violência que não se preocupasse em ser eficaz em mudar a História, seria ainda apenas mera passividade, embora cheia de bons princípios e de bons sentimentos”.
Marcelo conclui: “A história da humanidade, nestas últimas décadas, deu plena razão a Dom Helder, uma vez que os grupos armados e as revoluções violentas não resultaram em algo melhor” e convida: “Sem dúvida, você concorda comigo que o mundo deste início do século XXI precisa mais ainda da ação não violenta ativa articulada e comprometida com a inclusão social e com a paz, justiça e cuidado com o universo ao qual pertencemos […] Procure em sua região quem articula esses grupos alternativos e se sinta dentro dessa humanidade nova que vive o melhor da herança de Dom Helder Câmara”.
NENHUMA FELICIDADE PODE BASEAR-SE NA INFELICIDADE DOS OUTROS, PORQUE OFENDERIA O SENTIDO DE JUSTIÇA QUE DIZ RESPEITO A TODOS (…) DEUS DEU AO SER HUMANO O PODER E A RESPONSABILIDADE DE NÃO SE CONFORMAR COM O SOFRIMENTO E A DOR DO INOCENTE, MAS DE COMBATER O MAL E A INJUSTIÇA. ESSA É A TAREFA DE TODOS NÓS.
5- Concluo com a herança que Helder deixou especialmente para nossa identidade como instituição religiosa. Uma Igreja que seja povo de Deus, a serviço e testemunha do Reino, humilde, pobre, engajada e horizontal.
Dom Helder reconhecia que a Igreja, desde quando foi assumindo grandes dimensões, teve de ir se institucionalizando, e como isso trouxe algumas consequências negativas: a busca por promover a si mesma e se estabelecer acima da promoção do Reino; a busca por manter e expandir poder, prestígio e privilégios, corrompendo seus princípios; a prática de obras sociais de assistência como algo externo à sua missão, e não sua essência; a cumplicidade com governos injustos e opressores, além de muitos crimes e pecados graves no seu seio.
Marcelo afirma: “Não basta reconhecer que a Igreja é santa e, ao mesmo tempo, pecadora. Reconhecer o pecado exige a coragem de lutar para superá-lo. Na comunhão com os pobres, o Dom percebeu as consequências terríveis do colonialismo antigo e atual. E, com grande sofrimento, foi percebendo como bispos e padres quase sempre tendiam a ser cúmplices e legitimadores do autoritarismo e do poder opressor” e demonstra isso nas palavras de Helder: “Aqui, como em toda a América Latina, nós pregamos ao povo um cristianismo excessivamente passivo. Pedimos paciência, obediência, que as pessoas aceitem os seus sofrimentos… Pode ser que isso seja virtude, mas, da forma e no contexto no qual esses valores foram apresentados, acabaram contribuindo para oprimir nosso povo”, que também proclamou com confiança na fidelidade de Deus: “Pensas, então, que as fraquezas da Igreja levarão o Cristo a abandoná-la? Quanto mais nossa fragilidade humana atingir a Igreja – que é nossa e d’Ele -, mais Ele a sustentará com seu apoio, com seu carinho. Abandonar a Igreja seria o mesmo que abandonar seu próprio Corpo”.
Dom Helder assumia concretamente aquilo em que acreditava, e representava o rosto de uma Igreja profética, que falava a todos os povos, e não apenas para si mesma, e que dava voz aos sem-voz. Foi dele a declaração que Marcelo recebeu e relata: “É importante ler a história a partir dos pequenos, pelo avesso do que a sociedade oficial conta. E usar como instrumento interpretativo um grande amor aos últimos. Os pobres não são melhores do que ninguém, mas, se existe Deus, não pode haver pobreza injusta… Por isso, a Igreja, se quer testemunhar o amor divino, tem de se comprometer em lutar contra a pobreza injusta. Essa luta deve ser pacífica e não violenta, vivida a partir da inserção e dando o protagonismo aos pobres”.
Marcelo foi assessor de Helder para o ecumenismo e diálogo com outras religiões e povos, e relata que aprendeu duas coisas do testemunho do Dom: “1-O importante do ecumenismo não é a unidade das Igrejas em si mesmas, mas essa busca da unidade é para servir ao povo […] 2-Dom Helder valorizava os pastores e o diálogo com os ministros, mas me dizia sempre que a unidade só se dará a partir das bases. Nunca se detinha em discussões de cúpula nem dava muita importância aos diálogos oficias. Priorizava visitas e contatos com pessoas simples de outras Igrejas e religiões”. Após supor que um dos motivos para as críticas de um pastor evangélico à Igreja Católica era a demissão de trabalhadores evangélicos de uma indústria por ordem de um de seus antecessores, Helder disse para Marcelo: “Se queremos trabalhar pela unidade, vamos ter de suportar que nos joguem na cara o que, no passado remoto e também recente, nós, católicos, fizemos de arrogante, injusto e antievangélico. Ser humilde e aceitar essa situação faz parte de sua vocação ecumênica. Não deixe cair a profecia!”
QUE SE APRESENTE CADA VEZ MAIS NÍTIDO, NA AMÉRICA LATINA, O ROSTO DE UMA IGREJA AUTENTICAMENTE POBRE, MISSIONÁRIA E PASCAL, DESLIGADA DE TODO O PODER TEMPORAL E CORAJOSAMENTE COMPROMETIDA NA LIBERTAÇÃO DE TODO O SER HUMANO E DE TODA A HUMANIDADE.
Espero que tenha gostado de conhecer um pouco mais desse profeta, que tantas heranças deixa para nossos dias. Agora é com você. Na medida do possível, vá assumindo em sua vida os traços mais belos dos testemunhos dos homens e mulheres que, ao longo de suas vidas, buscaram ser reflexo de Cristo para seus contextos históricos. Que Maria de Nazaré, aquela que tudo guardava e meditava no coração, te ajude nesse caminho.
Rodrigo Staudemeier Gonçalves